Pensar o Direito Privado da mesma forma que o Direito Público aparenta uma difícil e complexa tarefa. É comum uma leitura constitucional do Direito Processual Penal, bem como do Direito Administrativo. Contudo, quando se comenta em um Direito Civil Constitucional, a primeira impressão, infelizmente, ainda é de estranheza. Essa reflexão, embora já tardia, faz-se necessária ante os novos desafios advindos com a atual sociedade.
Tal debate, mostra-se oportuno, visto que neste dia 05 de outubro houve a comemoração dos 30 anos da Constituição Federal de 1988, tão flexibilizada e jurisprudencializada nos últimos tempos. É assustadora a ideia de uma nova constituinte no próximo ano, quando se faz presente uma das melhores, senão a melhor Constituição do mundo.
Retornando ao Direito Civil Constitucional, podemos encontrar sua origem em uma europa pós-guerra, oportunidade na qual diversos países, após inestimáveis perdas de valores, decidiram promulgar Constituições que perseguissem constantemente a democracia, solidariedade e a proteção da dignidade da pessoa humana, tão relegada anteriormente.
Contudo, os novos pensamentos constitucionais divergiam das vigentes codificações civis, ainda arraigadas em institutos individualistas e patrimonialistas. Deste modo, a doutrina passou a produzir uma nova metodologia civil, principalmente, com o italiano Pietro Perlingieri.[1] No Brasil, o marco desta reflexão deu-se com Gustavo Tepedino e Maria Celina Bodin de Moraes, após seus estudos na Scuola di Specializzazione in Diritto Civile da Università di Camerino.
O Direito Civil Constitucional pode ser definido como uma corrente metodológica, a fim de defender uma permanente releitura do Direito Civil à luz da Constituição, não apenas limitando-se ao campo da interpretação, mas reconhecendo que as normas constitucionais de fato podem ser diretamente aplicadas às relações privadas, com o intuito de obter a máxima realização dos valores constitucionais no campo particular.
Afinal, o Direito é uma ciência social que precisa cada vez mais ser sensível a qualquer modificação da realidade, tendo o homem como referência na sua evolução psicofísica existencial.
Segundo Pietro Perlingieri são três seus fundamentos: a) a natureza normativa da Constituição; b) a complexidade e unidade do ordenamento jurídico e o pluralismo das fontes; c) o desenvolvimento de uma renovada teoria de interpretação e aplicação. Portanto, nega-se aqui a função meramente política da Carta Magna, defende-se a unidade de um ordenamento civil-constitucional, bem como almeja-se uma nova interpretação, isto é, interpretar o Código Civil a partir da Constituição, e não o contrário.[2]
Embora nosso Código Civil tenha entrado em vigor após a promulgação da Carta Magna, denota-se seu descompasso[3] com a Constituição, tendo em vista ter sido fruto de um projeto à época do duro período da ditadura militar. Exemplo disso é a ausência de disposições sobre uniões homoafetivas. Assim, é notório a necessidade da elevação da doutrina que aqui se ventila.
Porém, não se desconhece aqui a intenção original de Miguel Reale, isto é, superar o manifesto caráter individualista do Código Civil de 1916, feito por um país, à época, eminentemente agrícola.[4] Portanto, o objetivo inicial era a prevalência do social sobre o individual, o que pode ser compreendido pela própria consagração dos direitos da personalidade, todavia, insuficiente.
Pode-se afirmar, então, a imprescindível busca, também nas relações privadas, de uma socidade justa, livre e solidária. Para tanto, faz-se necessário uma despatrimonialização do Direito Civil, afastando este caráter puramente patrimonial tradicional. Nesse sentido, adverte Pietro Perlingieri:
Não é suficiente, portanto, insistir na afirmação da importância dos “interesses da personalidade no direito privado”; é preciso predispor-se a reconstruir o Direito Civil não com uma redução ou um aumento da tutela das situações patrimoniais, mas com uma tutela qualitativamente diversa.[5]
Ou seja, como melhor exemplificam Anderson Schreiber e Carlos Konder[6], não se deseja uma expulsão do caráter patrimonial nas relações privadas, mas sim uma nova funcionalização a partir de valores constitucionais.
Em síntese, a metodologia civil constitucional busca a mudança de direção das relações particulares, fazendo com que essas almejem a máxima realização da solidariedade social e dignidade da pessoa humana, propiciando que situações existenciais prevaleçam sobre as patrimoniais.[7] O “ter” passa a perder para o “ser”.
Visando sua concreta realização, há princípios próprios e meios de interpretação próprios, sendo oportuno discriminar seus principais neste artigo, a fim de corroborar com sua proposta inicial, ou seja, uma breve introdução ao Direito Civil Constitucional, visto que seria inviável discorrer nesta coluna acerca seu integral teor.
Inicialmente, indubitável o reconhecimento de um personalismo e solidarismo constitucional. Deveras possa ter inúmeros significados, aqui se afirma a solidariedade em relação a comunidades intermediárias, dos membros da família em relação à família, dos sócios em relação à sociedade, de uma comunidade em relação à comunidade mais ampla da qual faz parte.[8]
A igual dignidade social também mostra-se imprescindível, isto é, conferir a cada um o direito ao respeito inerente à qualidade de homem, lhe colocando em condições idôneas a exercer a própria aptidão pessoal. Dessa forma, é dever do Estado agir contra situações econômicas, morais e culturais degradantes, as quais possuem o condão de tornar os sujeitos indignos.[9]
Por último, em relação aos princípios, destaca-se o da igualdade constitucional com os institutos do Direito Civil. Esse, poderá incidir sobre a individulização dos conteúdos de claúsulas gerais que contribuem com a definição dos institutos fundamentais do Direito Civil, tal qual a “função social” para a propriedade e posse, de modo a realizar uma equitativa harmonização entre o interesse individual e o geral. Com isso, compreende-se que o Direito Civil não se apresenta em antítese ao Direito Público, vez que é um direto dos cidadãos, titulares de direitos frente ao Estado.[10]
No que tange aos métodos de interpretação, irrefragável, no que concerne ao Direito Civil Constitucional, a necessidade de uma interpretação axiológica como superação da interpretação literal. Ou seja, uma superação do in claris non fit interpretatio. Isso, em virtude de a norma não estar sozinha, exercendo sua função unida ao ordenamento, sendo que seu significado muda com o dinamismo do ordenamento ao qual pertence.[11] Como adverte Perlingieri “ […] a interpretação é, por definição, lógico-sistemática e teleológico-axiológica, isto é, finalizada à atuação dos novos valores constitucionais”.[12]
Frise-se ainda a interpretação a partir de uma legalidade constitucional, sendo que todas as normas devem ser reconduzidas aos valores constitucionais. Com isso, não se quer dizer que os dispositivos do Código Civil tem valor constitucional ou que estão acima desse, mas que devem harmonizar-se e adequar-se à normativa constitucional, sob pena de serem consideradas ilegítimas.
Tais advertências mostram-se imprescindíveis de aplicação nestes 30 anos de Estado Democrático de Direito. Evidente que o Direito Civil Constitucional não se limita ao discriminado acima, sendo objetivo do presente escrito somente introduzir e, por conseguinte, refletir acerca de uma nova leitura do ramo privado.
Inegável o momento obscuro que a sociedade brasileira suporta atualmente, no qual prevalece insegurança em todos os sentidos, inclusive já alertado em outras ocasiões.[13] Contudo, compreende-se a ausência de sentido no anseio em buscar uma nova constituinte, sendo tal questão impossível de fundamentar neste breve artigo, ante sua ilógica complexidade e a divergência com a finalidade deste.
Dessarte, chama-se a atenção para a disciplina descrita, afinal, o respeito à Constituição não implica tão somente na observância de determinados procedimentos para emanar a norma infraconstitucional, mas, também, a necessidade de que seu teor atenda aos valores consagrados na Carta Magna.
Parabéns Constituição Cidadã, que seu aniversário não seja seu fim.
Victor B. Gonçalves é aluno do 8º semestre da Universidade da Região de Joinville – Univille